FUTUROS
VERMELHOS
Ficção
científica além da Cortina de Ferro
Bruno
Schlatter
É interessante notar como a ficção científica se
tornou, ao longo do século XX, um gênero literário associado aos Estados Unidos
e ao mundo capitalista e anglófono de maneira geral. Apenas para fins de ilustração,
um blog (obviamente norte-americano) dedicado ao tema fez algum tempo atrás uma
listagem de obras de ficção científica e fantasia na forma de um fluxograma
para guiar um leitor iniciante. Entre os selecionados, a predominância quase
absoluta de autores de língua inglesa é patente – as únicas obras em outro
idioma presentes são as do francês Júlio Verne, praticamente o pai do gênero. É
claro que não se pode tomar um trabalho tão informal como exemplo geral (afinal,
uma lista que inclua nomes como Max Brooks, cujo elemento mais significativo do
currículo é ser filho do comediante Mel Brooks, e ignora outros como o
argentino Jorge Luís Borges ou o italiano Italo Calvino, não pode ser levada
muito a sério), mas ela se presta bem para ilustrar a predominância da língua
na definição dos paradigmas mais conhecidos do gênero, através de autores como
L. Sprague de Camp, Isaac Asimov e Ray Bradbury.
Pode parecer fácil concluir a partir destes autores
mais paradigmáticos que a ficção científica como um todo é cria do capitalismo
moderno, uma espécie de subproduto da ideologia do progresso absoluto e do
avanço tecnológico irrestrito. Como toda conclusão precipitada, no entanto, ela
ignora todo o panorama mais amplo do gênero, com autores que muitas vezes
escreveram em outras línguas e que, justamente por isso, não tiveram um alcance
mais significativo no contexto cultural ocidentalizado após a Segunda Guerra
Mundial.
Os países socialistas do leste europeu, em especial, a
começar pelos que formavam a antiga União Soviética, foram durante todo o
século XX bastante prolíficos neste campo. Pode-se resgatar esta tradição na
literatura fantástica, na verdade, desde os contos eslavos medievais, e mesmo
alguns dos grandes escritores russos do fim do século XIX e começo do XX, desde
pelo menos Nikolai Gogol, com o seu clássico conto O Nariz, até Mikhail Bulgakov, que chegou a se aventurar pela
ficção científica propriamente dita em histórias como Um Coração de Cachorro. A própria palavra robô tem raiz tcheca, uma vez que os famosos robôs do gênero
apareceram pela primeira vez em um peça teatral do escritor Karel Čapek.
É preciso relacionar, é claro, muito da ficção
científica em países socialistas à própria ideia de futuro revolucionário. A
ideologia revolucionária é uma ideologia que se volta para o futuro, tentando
prever a vitória final do comunismo contra o capitalismo, e isso não poderia
ser simplesmente ignorado por um gênero literário cujo elemento marcante é
justamente a especulação sobre a ciência e o futuro da humanidade. Some-se
ainda a censura imposta pelo regime totalitário, que inibia o uso da literatura
com fins mais críticos, e tem-se toda uma tradição de utopias fantásticas e
batalhas entre comunistas e capitalistas no futuro distante, do qual
destaca-se, acredito, as obras do russo Aleksey N. Tolstoy. Aelita, por exemplo, narra a viagem de
um engenheiro comunista a uma sociedade totalitária em Marte, e é considerada
por muitos como a primeira ficção científica espacial soviética (ainda que com
um enredo suspeitamente parecido com A
Princesa de Marte, do norte-americano Edgar Rice Burroughs, recentemente
adaptado como um blockbuster de
cinema com o nome de John Carter: Entre
Dois Mundos).
Algumas distopias mais críticas ao regime, no entanto,
também foram escritas neste período, mas foram muitas vezes proibidas de serem
publicadas até a abertura política no fim do século. Além de casos mais
emblemáticos, como o já citado Bulgakov, destaca-se principalmente a obra do
russo Yevgeny Zamyatin, cuja obra-prima é We,
uma sátira da racionalização do trabalho passada mil anos após o Estado Único
conquistar toda a Terra. Em um mundo onde as pessoas são referidas por códigos
de letras e números – o protagonista, por exemplo, é chamado D-503 -, Zamyatin
aproveitou para realizar várias críticas ao governo bolchevique pouco após a
Revolução de Outubro (o livro foi completado em 1921, e uma primeira edição foi
publicada em 1924 na Inglaterra; mas ele foi publicado no seu país de origem
apenas em 1988). Apesar de pouco conhecido no ocidente, o livro é considerado
por alguns críticos e ensaístas como uma das grandes distopias da ficção
científica do século passado, a par com 1984,
de George Orwell, e Admirável Mundo Novo,
de Aldous Huxley.
O título de mais conhecido escritor de ficção
científica a leste da Cortina de Ferro, no entanto, provavelmente pertence ao
polaco Stanislaw Lem, autor de livros como A
Cyberíada, Memórias Encontradas numa
Banheira, e o seu mais famoso, Solaris,
adaptado duas vezes para o cinema. Ele já pertence, no entanto, a um período
posterior do mundo socialista, pós-Stálin, escrevendo boa parte dos seus
trabalhos mais conhecidos no período de
distensão do conflito velado entre as superpotências durante as décadas de 1960
e 1970. Suas obras, mesmo as mais leves e descontraídas como A Cyberíada, possuem um tom mais crítico
e de questionamento, especulando sobre a natureza de inteligências alienígenas
e as vicissitudes da comunicação humana.
Lem também nos permite fazer a ligação com outro
importante nome da ficção científica socialista, porém em outra mídia que não a
literatura, o cinema. A primeira e mais conhecida adaptação de Solaris ficou a cargo de Andrei
Tarkovsky, renomado diretor russo, e recebeu diversos prêmios e nomeações em
festivais internacionais. Foi uma produção com uma dose considerável de
polêmicas, em especial entre os seus dois criadores, que divergiram bastante
sobre a fidelidade da adaptação. O filme de Tarkovsy, de maneira geral, busca
explorar o drama mais humano dos cientistas envolvidos com a descoberta de uma
inteligência alienígena do tamanho de um planeta, diferente da obra original de
Lem, que tem como elemento central a própria inteligência extraterrena e o seu
contato com os astronautas da Terra.
Outra obra importante de Tarkovsky com elementos de
ficção científica é Stalker, baseado
na novela Roadside Picnic, dos irmãos
Arkady e Boris Strugatsky. Como em Solaris,
a adaptação também exibe muito mais a assinatura do diretor do que dos seus
autores originais. O centro da narrativa, novamente, está nos personagens
humanos – um escritor e um cientista que querem fazer uma incursão à “Zona”,
uma região proibida onde fenômenos inexplicáveis acontecem, e, principalmente,
o guia que contratam para levá-los –, e menos no seu elemento fantástico, que,
na novela, supõe-se abertamente ser de origem alienígena. Pode-se dizer que
Tarkovsy faz uma leitura mais universal do enredo no seu trabalho, com
questionamentos sobre a própria natureza humana e a sua busca de sentido e
dignidade, enquanto o mundo dos irmãos Strugatsky recorre mais diretamente à
sátira do que à alegoria, servindo de veículo para críticas mais diretas à
arte, à ciência e a religião.
Mesmo nos dias de hoje há espaço para o fantástico e a
ficção científica entre autores de ex-repúblicas soviéticas, mesmo aqueles que,
fugindo da classificação de literatura de gênero, atingem algum renome
literário. O principal destes possivelmente seja, acredito, o russo Victor
Pelevin, que os mistura com filosofia oriental em obras como Omon-Ra, A Vida dos Insetos e The
Sacred Book of the Werewolf como uma forma de satirizar e criticar a sociedade
pós-soviética no seu país. Outro autor russo contemporâneo a explorar o tema é
Vladmir Sorokin, que em Day of the
Oprichnik que retrata a possibilidade de uma volta ao czarismo em uma
Rússia distópica algumas décadas no futuro. E outros países onde o gênero é
prolífico nos dias de hoje incluem a Ucrânia, muito embora diversos autores do
país na verdade publiquem seus livros por editoras russas, a República Tcheca,
e a Romênia.
Este pequeno resgate de obras e autores pouco
conhecidos no mundo ocidental, é claro, não quer ser exatamente um guia
definitivo, mas apenas um ponto de partida para entender melhor a ficção
científica escrita fora da esfera cultural do ocidente. Pode-se encontrar obras
assim também no Japão e na China, na Indonésia e mesmo em países muçulmanos. O
importante é a consciência de que especular sobre o futuro, a ciência e a
tecnologia não é necessariamente uma característica do mundo capitalista, mas
um traço comum à maioria das sociedades humanas, excetuando-se talvez as mais
simples e arcaicas.
Sugestões de leituras:
BULGAKOV, Mikhail. Um
Coração de Cachorro e Outras Novelas. São Paulo: EdUSP, 2010.
ZAMYATIN, Yevgeny. We. New York: Penguin,
1993.
LEM,
Stanislaw. Solaris. Rio de
Janeira: Relume-Dumará, 2003.
_____________.
Cyberiad. San Diego: Harcourt, 2002.
STRUGATSKY,
Arkady, & STRUGATSKY, Boris. Roadside
Picnic. Chicago: Chicago Review Press, 2012.
PELEVIN,
Victor. Omon-Ra. New York: New
Directions, 1998.
SOROKIN,
Vladmir. Day of the Oprichnik. New
York: Farras, Straus and Giroux, 2011.
Bruno
Schlatter
É professor
de História na Rede Municipal de Porto Alegre