sábado, 19 de maio de 2012

O Zumbi é o lobo do homem


O Zumbi é o lobo do homem

Caio de Freitas Paes


“O homem é o lobo do homem”, disse o filósofo inglês Thomas Hobbes, para, de certa forma, justificar o papel do Estado como protagonista de uma (utópica) harmonia social. Esqueçamos as implicações sócio-políticas derivadas desta frase, e nos concentremos na ideia do homem como algoz de si mesmo. Os séculos têm nos mostrado como somos os principais vilões/culpados de nossos medos. De nossas ansiedades, desigualdades. De nossas maiores preocupações.

            Em outro ponto, um dos nossos principais medos é o da morte. Não apenas como fim de uma sequência infindável de acertos e erros, mas como um local/tempo/existência completamente desconhecido. A morte, no entanto, é comumente vista como apaziguadora, pois a partir dela todos os problemas terrenos se “resolvem”. Não há mais preocupações sentimentais, financeiras, de saúde ou dor.

            Agora, a partir destes dois raciocínios, pensemos: há medo maior do semelhante que não morre? Que, após o fim da consciência cerebral advinda do mundo dos vivos, é condenado a caminhar a esmo pela terra, além da morte, privado de seu “descanso eterno”? E que, além disso, ceifa seu outrora semelhante? Não é tão absurdo pensar no medo que a humanidade tem de si mesma, e da existência pós-morte que se transforma numa maldição.

            De formas distintas, este medo de nós mesmos e do pós-morte tem sido abordado no mundo das artes. Desde a literatura de horror, das fábulas apocalípticas, chegando até ao mundo dos quadrinhos. E, claro, o mundo cinematográfico. Aqui, cintila o nome do cineasta norte-americano George A. Romero. Em 1968, Romero lança o clássico A Noite dos Mortos-Vivos, produzido de modo quase independente, com diversos atores amadores e profissionais que trabalharam em diversas funções por trás das câmeras. O filme mostra desconhecidos tentando sobreviver, cercados em uma casa no meio do campo, a uma infestação que transforma humanos em seres desprovidos de raciocínio lógico – tal qual o que temos quando vivos -, forças movidas apenas pela fome. Fome de carne dos vivos. Fome esta que não pode ser saciada.

            Por mais que os “mortos-vivos” não fossem novidade no mundo cinematográfico, Romero trouxe um importante aspecto ao gênero com esta obra: a crítica social. Por meio desta metáfora (uma infestação de uma praga zumbi), o cineasta escancara o que Hobbes havia dito séculos antes: somos nossos próprios lobos. Para sobreviver, muitos de nós podemos tomar decisões eticamente discutíveis, condenáveis, mostrar facetas sombrias e obscuras da existência humana. Nos tornarmos assassinos impiedosos, sombras malditas em forma de homens e mulheres.

            E, vejam, há uma alta carga de individualismo neste receio de um apocalipse. No caso dos zumbis, há o individualismo daqueles que tentam sobreviver – que, em última instância, não hesitarão em jogar o outro a uma horda de mortos-vivos para escapar do perigo -, e o individualismo por parte dos zumbis – que despertam do descanso eterno para satisfazer uma necessidade individual, esta fome de vida (que nunca poderá ser plenamente saciada).



            Romero transita entre estes duros apontamentos sobre a obscuridade inerente a todos nós. A partir de 1968, Romero constrói uma extensa obra filmográfica marcada, claro, por seus filmes de zumbi. Mesmo que tenha transitado por outros gêneros – como o vampiresco em Martin [1976] e o drama Cavaleiros de Aço (1981), por exemplo -, o cineasta tornou-se o principal expoente do cinema de horror zumbi. A Trilogia dos Mortos, composta por A Noite dos Mortos-Vivos, O Despertar dos Mortos (1978) e Dia dos Mortos (1985), é essencial para qualquer fã do cinema de horror. Além disso, Romero aborda nestes filmes diferentes facetas humanas, indagando sobre nosso comportamento perante situações extremas, onde a sobrevivência é advinda de decisões difíceis, sem respostas certas ou erradas.



            Após um período distante da temática zumbi – da segunda metade da década de 80 até os anos 2000 -, Romero retorna ao gênero com o grande Terra dos Mortos, em 2005. Para muitos, o diretor já havia “dito tudo o que pudera” por meio de suas epifanias morto-vivas, mas Romero tem mostrado que ainda tem algumas reflexões pertinentes. Desde 2005, outros dois filmes com esta mesma catarse apocalíptica de pano de fundo foram lançados – Diário dos Mortos (2007) e Ilha dos Mortos (2009). Pode parecer que este gênero seja, de certa forma, um estigma na carreira de Romero, mas o diretor mostra que ainda consegue extrair boas indagações e contar ótimas histórias nesta temática.

            As hordas de mortos-vivos de Romero representam muito mais que o medo; elas simbolizam uma sociedade com raízes apodrecidas, autofágica. Condenados a vagarem pelos campos em busca do último sinal de vida restante, os zumbis de Romero são incansáveis. Com corpos apodrecidos, são movidos apenas pela fome, pela determinação em destruir – mesmo que inconscientemente – o mundo do qual fazemos parte. No universo romeriano, as instituições que restam são quase caricaturescas, exploradoras, maléficas. Por mais que soe de certa forma maniqueísta, Romero busca debater esta hierarquia global que nos é imposta por meio de uma sociedade neoliberalista, capitalista.

            Há de se destacar também a influência das obras George A. Romero. Expoente máximo do gênero, o cineasta influenciou artistas de outros campos, como, por exemplo, Robert Kirkman, roteirista de quadrinhos responsável pela febre The Walking Dead. Mais especificamente na obra original em quadrinhos, Kirkman bebe diretamente da fonte romeriana para construir sua bem arquitetada e rítmica narrativa. O quadrinista é apenas um de inúmeros outros artistas que admiram e homenageiam o trabalho inovador de Romero.



            De certo modo, Romero, ao longo de sua extensa filmografia, sempre se mostrou interessado nestas facetas obscuras do ser humano. Por meio de corpos putrefatos, sedentos pela carne dos vivos, o cineasta nos apresenta quão corrompidos podemos ser. Quão maléficos podemos nos tornar. Seguindo uma extensa linhagem de artistas que aborda a temática apocalíptica como forma de discutir o que realmente somos, Romero continua construindo seu retrato de Dorian Gray. Para aqueles que não se lembram, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, narra a história de um homem eternamente jovem, que “aprisiona” sua verdadeira idade em um retrato – que não pode ser encarado. O corpo de um saudável jovem aprisiona uma figura decrépita, corroída por vaidade, putrefata. No caso do cineasta norte-americano, o retrato é o de nós mesmos. E, além disso, não pode ser escondido: ele nos é estampado, mostrado, para que encaremos nossas chagas, feridas e cânceres mais profundos, mais temerosos. E, sem dúvida alguma, precisamos fitá-lo.

            Ainda há de se discutir o viés social dos zumbis romerianos. Mesmo que movidos por necessidades individuais, há uma espécie de organização entre os mortos-vivos. Unidos pela fome, os zumbis marcham juntos pelo globo. E é exatamente por conta desta união que eles conseguem triunfar sobre os vivos. Porque, veja, eles são os vencedores no universo romeriano. O mundo agora lhes pertence, e não há nenhum esboço de reviravolta nesta “batalha”. Romero não nos mostra curas, soluções para a praga. O cineasta sempre destaca o caos, o egoísmo e, mais que tudo, a luta por uma sobrevivência enganosa por parte dos vivos. Não há uma equipe de cientistas desenvolvendo curas, formas de livrar os mortos (e os vivos) da maldição zumbi. Há cidades, ilhas, redutos de sobreviventes que, em tempo, estão condenados a se tornarem cemitérios, a se juntarem às filas de mortos-vivos que caminham pela Terra. E, comumente, o diretor elege um zumbi para liderar as hordas, para guiar os mortos-vivos em sua incansável incursão contra os humanos.

            É interessante notar, entretanto, que estes líderes estão sempre na linha de frente de batalha, misturados à plebe zumbi, quase que como socialistas utópicos, em pé de igualdade com seus semelhantes. Bom exemplo é Big Daddy em Terra dos Mortos: ele é o primeiro a usar ferramentas contra os humanos, utilizar pás, paus e armas de fogo contra os sobreviventes. É ele também o primeiro a ousar atravessar o rio que separa o mundo tomado pelos mortos do último reduto humano, uma cidade cercada por água e inundada em corrupção, desigualdade e selvageria. É para viver neste mundo desigual que os humanos romerianos lutam. Lutam sem possibilidade alguma de vitória. A força zumbi veio para ficar, para consumir a humanidade, para destruí-la como um todo. O apocalipse zumbi de Romero é a verdadeira revolução: muda, de forma irreversível, a nossa ordem mundial.

            Há ainda diversas outras reflexões possíveis acerca das obras de George A. Romero sobre a praga zumbi, com certeza. A cada espectador cabe fazer sua própria leitura das epifanias sangrentas, violentas, brutais e reflexivas realizadas pelo cineasta americano. Suas obras têm este poder: fazer-nos pensar quem somos, no que nos transformamos ao longo dos séculos, como nos comportaríamos diante de condições tão hostis e horrendas. Estampar a todos nós como, no momento decisivo, somos capazes de tudo. De “matar” o desconhecido, o amigo, o pai, o filho. E, do outro lado da câmera, Romero te pergunta se isto vale a pena. Talvez seja, de fato, este o nosso destino: exaurirmos o planeta, nós mesmos. Exterminar cada traço de vida humana restante. Limpar nossa existência da Terra. Sucumbirmos diante do lobo, sedento de si mesmo. Uma fome que se prolonga infinitamente, tal como nossa ganância. Fadados a um fim melancólico, brutal, acachapante. Por nossas próprias mãos.


Caio de Freitas Paes
Jornalista e Crítico de cinema



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