Stanley
Kubrick descolorido ou As sombras da verossimilhança
Rafael
Hansen Quinsani
Muitos
são os adjetivos atribuídos a um dos maiores cineastas da sétima arte. Gênio, polêmico,
são alguns exemplos. Constantemente suas obras são lembradas por críticos, estudiosos
e cinéfilos. E com frequência a lembrança recai sobre as películas 2001 uma odisseia no espaço, Laranja Mecânica, O iluminado e Nascido para
matar. Estas obras, vitais para a história do cinema, são consideradas seus
melhores trabalhos. Entretanto, seus filmes iniciais, rodados em preto e branco,
têm no seu conjunto uma característica quase ausente nas suas obras
posteriores: são mais próximos da verossimilhança do contexto retratado,
destacando emoções e a humanidade dos personagens retratados. E o que estas
obras singulares nos apresentam?
A
carreira deste criativo realizador estadunidense, nascido em 1928, inicia na
fotografia, com trabalhos e reportagens para diversos periódicos. Sua estreia
no cinema ocorre com alguns curtas-metragens. Seu primeiro longa Medo e desejo, de 1953, não atingiu
grande repercussão sendo posteriormente retirado do mercado pelo próprio
cineasta. Neste contexto das décadas de 1940 e 1950, Kubrick seria influenciado
por um gênero (ou um estilo como querem alguns) que sacudiu o meio
cinematográfico: o noir. Batizado por
críticos franceses que identificaram em alguns filmes produzidos no período pós-guerra
alguns elementos em comum, como a fotografia e a cenografia inspiradas no
expressionismo alemão, a presença de mulheres fatais que desafiavam o ideal
patriarcalista da época, e o tom pessimista das histórias, carregadas de
suspense, ambiguidade e algumas bizarrices.
Em
1955 é lançado A morte passou por perto,
produzido com baixo orçamento, mas que impressionou muitos dos contemporâneos. A
história de Davy Gordon, um pobre boxeador que se apaixona por sua vizinha Gloria
Price, que trabalha numa casa de dança, e juntos decidem mudar de vida, destaca
o meio urbano e seus lugares sórdidos, além da solidão impregnada de melancolia
dos personagens, humanos, mas não simplórios. Um dos destaques do filme é a
construção da narrativa. O espectador vê as cartas de alguém no espelho de Davy
e mais tarde sabemos que são tios do personagem quando este conversa ao
telefone. A preparação de Davy para a luta é alternada com a preparação de
Glória para a dança. Kubrick utiliza os recursos estéticos para compor a
narrativa de forma simples, mas criativa. Os ângulos de câmera da luta de boxe
são ousados, intercalando a arte da luta com a perspectiva dos protagonistas. Os
espelhos das quitinetes dos protagonistas auxiliam na ampliação do espaço e na
multiplicação dos pontos de vistas. O sonho de Davy, apresentado em negativo
também impressiona. É no seu desfecho que o filme destaca alguns dos elementos
caros ao noir: as perseguições nos
becos e telhados, a neblina e as brigas insólitas. O derradeiro confronto ocorre
num depósito de manequins (onde o diretor joga com a presença do ator como
objeto cenográfico) que culmina num duelo com machados!
No
ano seguinte ao lançamento de A morte
passou por perto, Kubrick vai além lançando O grande golpe. Verdadeira pérola narrativa, esta película narra a história
de um roubo a um Hipódromo fragmentando a ação e o tempo. Neste processo o
diretor destaca os personagens e seus dramas, apresentando os motivos do
envolvimento no roubo. Um garçom, um funcionário da caixa de apostas, e um
policial não são criminosos típicos, mas pessoas comuns que desejam resolver
seus problemas. Também abundam os elementos noirs:
a mulher fatal que perverte o homem, as sombras, os ambientes escuros e os
personagens insólitos: o atirador bizarro e um lutador que joga xadrez. A ironia
está presente na morte da mulher cambaleando e derrubando a gaiola de seu
papagaio e na cena final, quando o personagem sobrevivente tenta fugir no
aeroporto e vê o dinheiro roubado se espalhar pela pista graças a uma confusão
iniciada por um pequeno cachorrinho.
Já
em 1957 o cineasta lança seu enfoque para o passado, abordando a I Guerra
Mundial em Gloria feita de sangue,
protagonizado por Kirk Douglas. Neste retrato impactante das trincheiras
enlameadas das fronteiras bélicas, as trincheiras nacionais e o patriotismo são
questionados na segunda metade do filme, quando ocorre o julgamento do oficial
francês. Uma obra forte e contundente sobre a guerra e suas consequências
humanas.
A
polêmica veio à tona em 1962, quando o cineasta filmou a obra de Vladimir
Nabokov Lolita, escrita em 1955. O
filme iniciou na criação do mito da ninfeta, presente até os dias de hoje na
cultura e na mídia. Fato recorrente na obra do cineasta, a adaptação de obras
literárias ganham destaque, sobretudo pelo uso que o cineasta faz dela para a
construção de suas películas. Kubrick transpôs para a abertura o embate final
dos antagonistas, modificação que confere à película outro tom na sua
narrativa. A anteposição de dois adversários em prol do amor da menina é mais
acentuada no filme. A brilhante interpretação de James Mason como o professor Humbert
encontra-se com a marcante presença de Peter Sellers como o produtor e roteirista
Quilty (o ator tinha liberdade para o improviso, fato raro nas obras de
Kubrick, descrito como dominador e pouco receptivo a espontaneidade). Quando
este aparece bêbado em sua mansão, sua primeira frase é emblemática: “Sou
Spartacus. Venho libertar os escravos”. Uma clara ironia do diretor com sua
obra anterior Spartacus, protagonizada por Kirk Douglas onde Kubrick trabalhou
sob as ordens do estúdio (também foi o primeiro filme colorido do cineasta)
substituindo Anthony Mann.
A
polêmica do filme constrói-se em torno da relação com o professor de
literatura, um europeu de meia idade vivendo nos EUA com a jovem conhecida como
Lolita, filha da dona da casa onde o professor se hospeda. A associação dos
elementos infantis (o bambolê, o pirulito, as saias) com a sensualidade
feminina exacerba uma tensão sexual no filme. Muito se criticou que o filme
ressalta mais o poder de sedução de menina do que o comportamento pedófilo do
protagonista. Mas o filme de Kubrick não se exime de destacar a ambiguidade dos
personagens, construindo aberturas para a reflexão do espectador. Destaca-se
ainda que na sua camada latente, verifica-se uma metáfora do imperialismo no
contexto da Guerra Fria, onde o “charme do velho do mundo” defronta-se com a
nova cultura de massa estadunidense simbolizada nas relações de confronto dos
personagens Humbert e Quitlty e de dominação e resistência do professor com
Lolita e sua mãe.
A
força da obra de Kubrick pode ser percebida quando comparada a versão de Adrian
Lyne, realizada em 1997. Destaca-se a ausência de Quilty, visto nas sombras e
presente fisicamente somente na cena final. Se esta ausência retira o opositor
de Humbert, que no filme de Kubrick inseria uma dualidade bem versus mal, por
outro lado também retira a ironia da atmosfera do filme, que também marca as
relações cotidianas de Humbert com sua nova esposa. Mesmo com uma vistosa
fotografia em tons sépia da obra de Lyne, que destacam as coxas roliças de
Lolita, sua pele molhada no banho de mangueira e seus olhos lancinantes, o
filme de Kubrick ganha pontos ao construir os personagens e compor uma
narrativa mais sólida, trabalhando com as possibilidades e limitações que a
época lhe impunha. Se no filme dos anos 1990 o sexo é mostrado visualmente e as
cenas ousadas pontuam o filme (quando Lolita retira o aparelho para fazer sexo
oral em Humbert ou quando come uma banana no carro) o filme sessentista busca
na sutiliza e nas lacunas provocar o espectador. Mais do que isso, a vitalidade
quase histriônica da Lolita dos anos 1990, que pode ser considerada uma
representação da autonomia feminina, perde força ante a ambiguidade alternada
da obra de Kubrick. Se no filme de Lyne a própria menina pinta sua unhas numa
cena quase corriqueira, a longa e detalhada cena do filme de Kubrick, onde
Humbert pinta delicadamente as unhas dos pés de Lolita, demarca um duplo poder
e dupla submissão de uma relação complexa.
Dois
anos após a realização de Lolita, Kubrick extrapolou seus limites naquela que
talvez seja sua melhor obra. Dr. Fantástico, segundo o crítico Roger Ebert é a “A
maior sátira política do século”. Nele encontramos uma abordagem radical à
narrativa onde a farsa revela os paradoxos do mundo em ebulição nos quentes
eventos da Guerra Fria.
Em
todos os treze filmes do cineasta encontramos um caráter destrutivo e autodestruitivo
da natureza humana, seja pelo amor, pela guerra, pelo patriotismo, pela
violência ou pelas trapaças. Curiosamente, quando realizou suas obras em preto
e branco, Kubrick aproximou-se da verossimilhança dos contextos retratados,
ressaltou o humanismo dos personagens construindo filmes mais emotivos. Suas
obras coloridas esvaziam em diferentes graus esses elementos, centrando-se nos
elementos estéticos e técnicos. “A história interessa pouco. Essencialmente,
Kubrick é o triunfo da técnica” escreveu o crítico Jean Tulard. Mas ao olharmos
a História (e as histórias) com mais cuidado, veremos que nem sempre foi assim.
Rafael
Hansen Quinsani
É
doutorando em História na UFRGS onde pesquisa a relação cinema-história
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