domingo, 6 de maio de 2012

Stanley Kubrick descolorido ou As sombras da verossimilhança


Stanley Kubrick descolorido ou As sombras da verossimilhança

Rafael Hansen Quinsani

Muitos são os adjetivos atribuídos a um dos maiores cineastas da sétima arte. Gênio, polêmico, são alguns exemplos. Constantemente suas obras são lembradas por críticos, estudiosos e cinéfilos. E com frequência a lembrança recai sobre as películas 2001 uma odisseia no espaço, Laranja Mecânica, O iluminado e Nascido para matar. Estas obras, vitais para a história do cinema, são consideradas seus melhores trabalhos. Entretanto, seus filmes iniciais, rodados em preto e branco, têm no seu conjunto uma característica quase ausente nas suas obras posteriores: são mais próximos da verossimilhança do contexto retratado, destacando emoções e a humanidade dos personagens retratados. E o que estas obras singulares nos apresentam?


A carreira deste criativo realizador estadunidense, nascido em 1928, inicia na fotografia, com trabalhos e reportagens para diversos periódicos. Sua estreia no cinema ocorre com alguns curtas-metragens. Seu primeiro longa Medo e desejo, de 1953, não atingiu grande repercussão sendo posteriormente retirado do mercado pelo próprio cineasta. Neste contexto das décadas de 1940 e 1950, Kubrick seria influenciado por um gênero (ou um estilo como querem alguns) que sacudiu o meio cinematográfico: o noir. Batizado por críticos franceses que identificaram em alguns filmes produzidos no período pós-guerra alguns elementos em comum, como a fotografia e a cenografia inspiradas no expressionismo alemão, a presença de mulheres fatais que desafiavam o ideal patriarcalista da época, e o tom pessimista das histórias, carregadas de suspense, ambiguidade e algumas bizarrices.

Em 1955 é lançado A morte passou por perto, produzido com baixo orçamento, mas que impressionou muitos dos contemporâneos. A história de Davy Gordon, um pobre boxeador que se apaixona por sua vizinha Gloria Price, que trabalha numa casa de dança, e juntos decidem mudar de vida, destaca o meio urbano e seus lugares sórdidos, além da solidão impregnada de melancolia dos personagens, humanos, mas não simplórios. Um dos destaques do filme é a construção da narrativa. O espectador vê as cartas de alguém no espelho de Davy e mais tarde sabemos que são tios do personagem quando este conversa ao telefone. A preparação de Davy para a luta é alternada com a preparação de Glória para a dança. Kubrick utiliza os recursos estéticos para compor a narrativa de forma simples, mas criativa. Os ângulos de câmera da luta de boxe são ousados, intercalando a arte da luta com a perspectiva dos protagonistas. Os espelhos das quitinetes dos protagonistas auxiliam na ampliação do espaço e na multiplicação dos pontos de vistas. O sonho de Davy, apresentado em negativo também impressiona. É no seu desfecho que o filme destaca alguns dos elementos caros ao noir: as perseguições nos becos e telhados, a neblina e as brigas insólitas. O derradeiro confronto ocorre num depósito de manequins (onde o diretor joga com a presença do ator como objeto cenográfico) que culmina num duelo com machados!


No ano seguinte ao lançamento de A morte passou por perto, Kubrick vai além lançando O grande golpe. Verdadeira pérola narrativa, esta película narra a história de um roubo a um Hipódromo fragmentando a ação e o tempo. Neste processo o diretor destaca os personagens e seus dramas, apresentando os motivos do envolvimento no roubo. Um garçom, um funcionário da caixa de apostas, e um policial não são criminosos típicos, mas pessoas comuns que desejam resolver seus problemas. Também abundam os elementos noirs: a mulher fatal que perverte o homem, as sombras, os ambientes escuros e os personagens insólitos: o atirador bizarro e um lutador que joga xadrez. A ironia está presente na morte da mulher cambaleando e derrubando a gaiola de seu papagaio e na cena final, quando o personagem sobrevivente tenta fugir no aeroporto e vê o dinheiro roubado se espalhar pela pista graças a uma confusão iniciada por um pequeno cachorrinho.

Já em 1957 o cineasta lança seu enfoque para o passado, abordando a I Guerra Mundial em Gloria feita de sangue, protagonizado por Kirk Douglas. Neste retrato impactante das trincheiras enlameadas das fronteiras bélicas, as trincheiras nacionais e o patriotismo são questionados na segunda metade do filme, quando ocorre o julgamento do oficial francês. Uma obra forte e contundente sobre a guerra e suas consequências humanas.


A polêmica veio à tona em 1962, quando o cineasta filmou a obra de Vladimir Nabokov Lolita, escrita em 1955. O filme iniciou na criação do mito da ninfeta, presente até os dias de hoje na cultura e na mídia. Fato recorrente na obra do cineasta, a adaptação de obras literárias ganham destaque, sobretudo pelo uso que o cineasta faz dela para a construção de suas películas. Kubrick transpôs para a abertura o embate final dos antagonistas, modificação que confere à película outro tom na sua narrativa. A anteposição de dois adversários em prol do amor da menina é mais acentuada no filme. A brilhante interpretação de James Mason como o professor Humbert encontra-se com a marcante presença de Peter Sellers como o produtor e roteirista Quilty (o ator tinha liberdade para o improviso, fato raro nas obras de Kubrick, descrito como dominador e pouco receptivo a espontaneidade). Quando este aparece bêbado em sua mansão, sua primeira frase é emblemática: “Sou Spartacus. Venho libertar os escravos”. Uma clara ironia do diretor com sua obra anterior Spartacus, protagonizada por Kirk Douglas onde Kubrick trabalhou sob as ordens do estúdio (também foi o primeiro filme colorido do cineasta) substituindo Anthony Mann.

A polêmica do filme constrói-se em torno da relação com o professor de literatura, um europeu de meia idade vivendo nos EUA com a jovem conhecida como Lolita, filha da dona da casa onde o professor se hospeda. A associação dos elementos infantis (o bambolê, o pirulito, as saias) com a sensualidade feminina exacerba uma tensão sexual no filme. Muito se criticou que o filme ressalta mais o poder de sedução de menina do que o comportamento pedófilo do protagonista. Mas o filme de Kubrick não se exime de destacar a ambiguidade dos personagens, construindo aberturas para a reflexão do espectador. Destaca-se ainda que na sua camada latente, verifica-se uma metáfora do imperialismo no contexto da Guerra Fria, onde o “charme do velho do mundo” defronta-se com a nova cultura de massa estadunidense simbolizada nas relações de confronto dos personagens Humbert e Quitlty e de dominação e resistência do professor com Lolita e sua mãe.


A força da obra de Kubrick pode ser percebida quando comparada a versão de Adrian Lyne, realizada em 1997. Destaca-se a ausência de Quilty, visto nas sombras e presente fisicamente somente na cena final. Se esta ausência retira o opositor de Humbert, que no filme de Kubrick inseria uma dualidade bem versus mal, por outro lado também retira a ironia da atmosfera do filme, que também marca as relações cotidianas de Humbert com sua nova esposa. Mesmo com uma vistosa fotografia em tons sépia da obra de Lyne, que destacam as coxas roliças de Lolita, sua pele molhada no banho de mangueira e seus olhos lancinantes, o filme de Kubrick ganha pontos ao construir os personagens e compor uma narrativa mais sólida, trabalhando com as possibilidades e limitações que a época lhe impunha. Se no filme dos anos 1990 o sexo é mostrado visualmente e as cenas ousadas pontuam o filme (quando Lolita retira o aparelho para fazer sexo oral em Humbert ou quando come uma banana no carro) o filme sessentista busca na sutiliza e nas lacunas provocar o espectador. Mais do que isso, a vitalidade quase histriônica da Lolita dos anos 1990, que pode ser considerada uma representação da autonomia feminina, perde força ante a ambiguidade alternada da obra de Kubrick. Se no filme de Lyne a própria menina pinta sua unhas numa cena quase corriqueira, a longa e detalhada cena do filme de Kubrick, onde Humbert pinta delicadamente as unhas dos pés de Lolita, demarca um duplo poder e dupla submissão de uma relação complexa.

Dois anos após a realização de Lolita, Kubrick extrapolou seus limites naquela que talvez seja sua melhor obra. Dr. Fantástico, segundo o crítico Roger Ebert é a “A maior sátira política do século”. Nele encontramos uma abordagem radical à narrativa onde a farsa revela os paradoxos do mundo em ebulição nos quentes eventos da Guerra Fria.

Em todos os treze filmes do cineasta encontramos um caráter destrutivo e autodestruitivo da natureza humana, seja pelo amor, pela guerra, pelo patriotismo, pela violência ou pelas trapaças. Curiosamente, quando realizou suas obras em preto e branco, Kubrick aproximou-se da verossimilhança dos contextos retratados, ressaltou o humanismo dos personagens construindo filmes mais emotivos. Suas obras coloridas esvaziam em diferentes graus esses elementos, centrando-se nos elementos estéticos e técnicos. “A história interessa pouco. Essencialmente, Kubrick é o triunfo da técnica” escreveu o crítico Jean Tulard. Mas ao olharmos a História (e as histórias) com mais cuidado, veremos que nem sempre foi assim.

Rafael Hansen Quinsani

É doutorando em História na UFRGS onde pesquisa a relação cinema-história


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