As
três visões de Matheson
Carlos Thomaz Albornoz[1]
Eu
sou a Lenda, de Richard Matheson, foi uma raridade,
desde o seu lançamento, em 1954. Um clássico instantâneo, adorado pelo público
e pela crítica (pelo menos os críticos de ficção científica). Uma bem sucedida
mistura de gêneros, horror e ficção, que não trai nenhum deles. Um livro que
mesmo seguindo várias tendências dos anos 1950 (texto apocalíptico, referências
veladas à guerra fria) não ficou datado. Praticamente desde a sua publicação
ficou claro que poderia dar origem a um grande filme. Tinha até o tamanho
‘ideal’, de novela, nem precisaria cortar muita coisa para tal (Matheson ser
roteirista de cinema pode ter algo a ver com isso). Mas três, bem diferentes um
do outro?
Em 1964 o empregador de
Matheson, Roger Corman, comprou os direitos do livro para rodar na unidade
europeia de sua produtora, a AIP. O filme foi rodado na Itália, sob a batuta do
britânico Sidney Salkow (e não de Ubaldo Ragona, citado nos créditos apenas
para a produtora receber incentivos fiscais), com a estrela da companhia,
Vincent Price, no papel principal. Das adaptações citadas neste texto é a mais
fiel: mantém os mortos vivos como vampiros conscientes de seu passado humano, o
personagem central como um ser atormentado e trágico, e ‘segura’ inclusive o
final pessimista. A principal adaptação que faz diz respeito à cidade onde se
passa a história: o livro descreve Nova York, no filme se trata de uma vila
anônima, já que a produtora não tinha dinheiro para ambientar tudo em Big
Apple. Há mudanças menores, também (o nome e profissão do personagem, a forma
com que se dá o final), nada que desvirtue a adaptação, mas o suficiente para
irritar o autor, que assinou o roteiro sob pseudônimo.
O cinema de ficção
científica ganhou um insuspeito aliado quando Charlton Heston, que ganhou fama
representando nada menos que Moisés e Ben Hur e era o ator mais poderoso de sua
época, revelou-se fã do gênero. Ele lutou anos para tirar do papel uma adaptação
de O Planeta dos Macacos, que foi um
sucesso retumbante e o permitiu fazer, quase literalmente, o que quisesse. E
ele quis filmar seu livro favorito, que era... Eu sou a Lenda.
O fato da obra ter sido
filmada meros 10 anos antes não assustou Heston, afinal era só fazer umas
‘pequenas adaptações’ e não haveria problema. Assim nascia A Última Esperança da Terra, dirigido por Boris Sagal em 1974. O
que era um conto trágico virou um filme de ação, e os vampiros do livro (e do
primeiro filme) viraram mutantes nucleares. O que era uma praga espalhada por
bactérias (tanto na literatura quanto no filme da AIP) virou uma arma biológica
que deu errado (sugestão da roteirista, Joyce Corrington, formada em química).
E, claro, o personagem trágico de Price não combinava com a personalidade macho man de Heston, que vira um herói
de ação, que sai caçando mutantes pelas ruas vazias de Nova Iorque com sua
metralhadora, no melhor estilo vigilante dos anos setenta. A fidelidade
literária foi para o espaço, mas pelo menos o filme era divertido (algo que nem
sempre acontece nas adaptações literárias), e grande parte de seus espectadores
não conhecia o original.
O sucesso (financeiro)
deste filme já o ‘marcou’ para uma refilmagem, pelo menos desde o meio dos anos
80. Arnold Schwarzenegger faria o ator central, e Ridley Scott, depois Paul
Verhoeven, assumiriam a direção. O tempo foi passando, vários atores (Tom
Cruise, Nicholas Cage, Michael Douglas e Mel Gibson chegaram a estar ligados ao
projeto em algum momento), diretores e roteiristas iam tentando adaptar a obra,
com mais ou menos sucesso, e o projeto não saía do lugar. O problema era sempre
o mesmo: orçamento. O filme de Schwarzenegger foi orçado, no início dos anos
90, em 250 milhões de dólares, um custo irreal para a época, e só não foi feito
por Batman e Robin ter sido um
relativo fracasso de bilheteria, assim como Esfera
e O Carteiro, convencendo os
produtores que não era hora de investir num épico de ficção científica. O livro Tales
from the Development Hell, de David Hughes, conta as diferentes fases do
projeto.
Tudo começou a andar
quando Will Smith se envolveu. Um projeto seu (Hancock) atrasou, ele foi ver em qual projeto em andamento ele
podia se encaixar e escolheu ‘Lenda’. Em uma medida rara, dois roteiros
escritos de forma independente, por Mark Protosevich e Akiva Goldsman, foram
combinados por eles para a filmagem. A direção chegou a ser confirmada para
nomes tão díspares como Rob Bowman, Michael Bay e Guillermo Del Toro, mas
acabou nas mãos de Francis Lawrence, vienense acostumado a trabalhar rápido. Os
fãs do livro temeram o que podia acontecer após o projeto passar por tantas
mãos. Para surpresa geral há uma relativa fidelidade ao livro na primeira
metade... que vai se afastando à medida que a história avança. Os vampiros do
livro viram zumbis, o especialista em plantas vira cientista tentando resolver
a praga, o final trágico vira heróico... para aumentar nosso desgosto, a
personagem de Alice Braga, brasileira na história, é ‘apresentada’ a Bob Marley
pelo personagem central... o resultado final até que é satisfatório, ainda mais
comparando com os absurdos roteiros que vazaram durante a longa gestação deste
projeto (o roteiro que devia ter sido filmado por Schwarzenegger mistura O Exterminador do Futuro com Duro de Matar, e um herói fanático por one liners, no estilo ‘engole essa’...).
Além destas três
adaptações ‘oficiais’, há algumas dezenas de filmes e livros influenciados pelo
livro de Matheson. O mais notório de todos é A Noite dos Mortos Vivos, clássico filme de George Romero, que
assumidamente se serviu de vários elementos do livro para seu roteiro, fato
esse admitido por Romero. Para ficar em um filme recente, Eu sou Omega, ‘concorrente’ do filme de Will Smith lançado em vídeo
na semana que este chegou aos cinemas, é uma espécie de refilmagem (pouco ou
nada disfarçada) de A Última Esperança da
Terra, o dos anos setenta, que retorna ao livro de origem várias vezes. Em
outros tempos teria gerado um processo por plágio.
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