DEMÔNIOS E
MARAVILHAS- UM BREVE PANORAMA INFERNAL NO CINEMA
Por
Cristian Verardi
“Um dia em que
os filhos de Deus se apresentaram diante do Senhor, veio também Satanás entre eles. O Senhor
disse-lhe: De onde vens tu? Andei dando volta pelo mundo, disse Satanás, e
passeando por ele.” (Jô Cap. 1 versículos 6 e 7)
Lúcifer, o Anjo
Caído, o grande adversário do Criador e de sua criação, o homem, é uma das
figuras mais emblemáticas da cultura judaico-cristã. O anjo que desafiou Deus,
e foi banido do paraíso celeste por sua ousadia, travando desde então uma
batalha pela alma humana, tem sido uma metáfora milenar para ilustrar e expiar
os males que assombram a humanidade.
Com a ascensão
do cristianismo, sincretismos religiosos e outras formas de assimilação
cultural acabaram gerando inúmeros nomes e formas para designar as múltiplas
facetas desta criatura mítica que representa o contra peso da balança na eterna
dualidade entre o bem e o mal. Lúcifer, Satanás, Belzebu, Mefistófeles, Pazuzu,
seja qual for a nomenclatura utilizada, é o termo grego “daemon” (δαίμων), que
origina a sua designação genérica mais comum, Demônio. Da serpente que seduz Eva no Genesis,
passando pelo dragão do Apocalipse e das lendas medievais até a figura popular
do homem com chifres e cascos no lugar dos pés, esta entidade maléfica
ultrapassa os limites do contexto bíblico e dos delirantes sermões
admoestatórios sobre os tormentos do inferno, para fazer parte de uma mitologia
universal, gerando uma fonte de inspiração inesgotável para reflexões
artísticas sobre a natureza humana.
O cinema em seus
primórdios, assim como ocorreu com a pintura, a fotografia e outras formas de
arte, também foi considerado por muitos uma ferramenta diabólica. Religiosos
alertavam os fiéis sobre a ilusão demoníaca e a permissividade moral da nova
invenção, como lembra Jean-Claude Carrière em seu ensaio “A Linguagem Secreta
do Cinema”, espectadores muçulmanos fechavam seus olhos diante da tela, pois
“uma antiga e severa tradição proibia-os de representar a forma e a face
humanas, criações de Deus”. A imitação do mundo era, portanto, obra do Demônio.
Pois o cinema
parecia realmente uma ferramenta ideal para a ação do mítico mestre da mentira
e da ilusão, e não tardou para que ele desse as caras na nova invenção, que
assombrava e seduzia o público no final do século XIX. O pioneiro cineasta francês
Georges Méliès (1861-1938), foi um dos precursores ao utilizar a figura do
Demônio em suas produções. Diabos de traços picarescos, herança das sátiras
medievais, infestavam suas produções, como Le
Diable au Convent (1899), Le Cake
Walk Infernal (1903) e Le Chaudron
Infernal (1903). Amparado por trucagens visuais nunca antes vistas pelo
público, Méliès, segundo Jean Tulard, “rompeu com o aborrecido cinema-verdade
de Lumière, criando o cinema-espetáculo”. Ao fornecer ao público, demônios e
maravilhas, além de uma fascinante viagem à lua, o experimentalismo de Méliès
auxiliou a conceber a linguagem cinematográfica que hoje conhecemos.
Outros pioneiros
do cinema se aventuraram na exploração de figuras diabólicas, como o americano
D.W. Griffith, com The Devil (EUA,
1908), e os italianos Francesco Bertolini e Adolfo Padovan, que em 1911,
inspirando-se esteticamente nas ilustrações de Gustav Doré, realizaram L’Inferno (Itália, 1911), uma
impressionante adaptação da primeira parte da obra A Divina Comédia, de Dante
Alighieri. Imortalizado na obra Goethe, o mito de Fausto, homem que em busca de
juventude e conhecimento vende sua alma para o demônio Mefistófeles, foi levado
às telas pela primeira vez em 1904, num curta-metragem do francês Georges
Fagot, mas sua representação mais marcante encontra-se em uma obra crepuscular
do expressionismo alemão, Fausto
(Faust - Eine deutsche Volkssage, 1926), de F.W. Murnau. Porém, entre as obras
seminais no tratamento do tema, talvez seja Häxan, A Feitiçaria Através dos Tempos (Häxan, 1922), de Benjamin
Christensen, a que melhor sobreviveu à evolução da narrativa cinematográfica,
apresentando um pesadelo de beleza lúgubre, que emula visualmente a obra do
pintor holandês Hieronymus Bosch, num universo repleto de demônios, bruxas medievais
e freiras possuídas, numa trama que mescla a ficção e o documental, explorando
teorias tanto místicas como racionais para relatar a influência de entidades
maléficas em nosso mundo. Em Häxan,
religiosidade, medos e superstições medievais se confrontam com as teorias
psicanalíticas em voga na época.
Em seus
primeiros anos, a abordagem do Diabo no cinema bebeu diretamente da fonte
literária (Goethe, Dante), nas lendas medievais e nos conceitos bíblicos. Seres
demoníacos, munidos de rabo e chifres, pululavam nas telas fazendo caretas,
seduzindo mulheres incautas ou barganhando a alma de homens gananciosos, e
mesmo que sua essência fosse claramente maléfica para a audiência da época,
vistas hoje, essas criaturas burlescas soam ingênuas, gerando mais risos do que
temor. Curiosamente, a figura mais representativa daquilo que seria a
“encarnação do mais puro mal”, pouco foi explorada nos primórdios de um gênero
que tem por natureza o objetivo de assustar as pessoas, o horror. Durante os anos 1930 e 1940, os estúdios da
Universal auxiliaram a popularizar o gênero, apavorando o público com títulos
marcantes como Drácula (1931), de
Todd Browning, Frankenstein (1931),
de James Whale, e A Múmia (1932), de
Karl Freund, mas durante este período foram raras, ou nulas, as incursões do
Demônio como protagonista, salvo eventuais presenças em produções bíblicas.
Em 1957, Jacques
Tourneur, veterano diretor dedicado ao cinema fantástico, que nos anos 1940
havia realizado as obras primas A
Morta-Viva (I Walked With a Zombie) e Sangue
de Pantera (Cat People), realizou o tétrico A Noite do Demônio (Night of The Demon), onde um homem buscava
desesperadamente livrar-se de uma maldição que o levaria, literalmente, para o
fogo do inferno. Tourneur sempre prezou pela sutileza, preferindo a sugestão ao
susto fácil, e brigou inutilmente com os produtores para que a figura do
Demônio fosse apenas sugestionada, mas sua única e flamejante aparição foi
suficiente para aterrorizar o público. Fã confesso da obra de Tourneur, em 2009
o diretor Sam Raimi inspirou-se em A
Noite do Demônio para conceber a trama de seu Arraste-me Para o Inferno (Drag Me To Hell).
Os anos 1960
despontaram com novas possibilidades para a exploração de um mito tão
controverso. Movimentos de contracultura, influenciados pelo esoterismo da Era
de Aquário, abriram as portas para diversas espécies de seitas, e o satanismo,
revisitado através da obra do ocultista inglês Aleister Crowley, ficou em voga
entre os jovens, influenciando a música, a literatura, e o cinema.
Neste período
conturbado, repleto de experimentações, enquanto os Rolling Stones cantavam
Sympathy for the Devil, a própria indústria do cinema passava por um processo
radical de transformação, e o Demônio começava a figurar em diversas produções
cinematográficas, e assim surgem obras ousadas e pouco convencionais como Invocation of My Demon Brother (1969),
de Kenneth Anger (seguida de Lucifer Rising, 1972) uma produção avant-garde,
onde o polêmico fundador da Igreja de Satã, Anton LaVey representava o próprio
Senhor das Trevas, e Incubus (1966), de Leslie Stevens, um
filme peculiar, de soturna fotografia expressionista, onde numa terra
indefinida um humano (William Shatner) e uma Sucubus (espécie de demônio
feminino), se apaixonavam. Um amor que colocava a alma imortal do homem em
jogo, disputada por outro demônio, o Incubus do título, que nascia das
entranhas da terra e assumia a forma de um grande bode negro, uma das
representações clássicas do Baphomet medieval. Para aumentar sua estranheza, a
produção é totalmente falada em esperanto, e fatos sinistros contribuíram para
aumentar sua fama de filme maldito. Não bastasse o fato de o interprete de
Incubus, o ator Milos Milos, assassinar a amante e cometer suicídio logo após
as filmagens, na noite de estréia o cinema onde o filme seria exibido pegou
fogo, e algum tempo depois os copiões desapareceram, tornando o filme
inacessível durante mais de trinta anos, até que uma cópia em bom estado fosse
encontrada na Cinemateca Francesa.
Ainda no começo
da década o diretor polonês Jerzy Kawalerowicz abordou o histerismo religioso
em Madre Joana dos Anjos (Matka
Joanna od aniolów , 1961), resgatando a
história a respeito de freiras alegadamente possuídas, abordada anteriormente
no clássico Häxan. O tema seria revisitado pelo inglês Ken Russell em 1971 com
o polêmico Os Demônios (The Devils),
tornando-se a base para um subgênero conhecido como nunsesploitation. Estas
obras se baseavam num fato em comum, o notório caso das Freiras de Loudun,
ocorrido na França em 1632, quando religiosas de um convento cometeram
sacrilégios declarando estarem sob a influência de demônios. Até mesmo a
tradicional produtora inglesa Hammer, notória por seu ciclo de filmes sobre o
Conde Drácula, deixou o vampirismo um pouco de lado para produzir As Bodas de Satã (The Devils’ Ride Out ,
1968), e alguns anos depois retornou ao tema do satanismo com Uma Filha
Para o Demônio (To The Devil a
Daughter, 1976), onde uma jovem Nastassja Kinski era oferecida em tributo ao
Diabo.
Em meio a
dezenas de produções baratas de horror que se sucederam neste período, é o
diretor Roman Polanki e seu notório O
Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968), quem explora de forma mais
contundente a essência do mal. Os demônios deixavam de ser meras metáforas e
carnavalizações, para se tornarem seres tangíveis, assim como os seus
simpáticos vizinhos de apartamento. O impacto do filme só não foi maior do que
o horror que se estabeleceu fora das telas, quando em 1969 a esposa de
Polanski, Sharon Tate, grávida de oito meses, foi brutalmente assassinada junto
com três amigos, pelos membros da famigerada Família Manson, num dos crimes que
mais chocaram a sociedade norte-americana nos anos 1960. Em 1980, quando John
Lennon foi assassinado diante do edifício Dakota, local onde ocorreram as
filmagens de O Bebê de Rosemary, a aura negra da produção voltou a ficar em
evidência.
Porém, se o
filme de Polanski abriu portas para o interesse dos grandes estúdios sobre o
tema, foi William Friedkin, em 1973, quem cimentou de forma permanente a imagem
do Demônio no cinema com O Exorcista
(The Exorcist). A história da possessão demoníaca de uma garotinha, que
blasfema contra Deus, comete automutilação, e se masturba com um crucifixo,
causou além de choque e pesadelos em platéias ao redor do mundo, uma
impressionante bilheteria e 10 indicações ao Oscar. Um feito memorável para uma
obra inserida numa linguagem tradicionalmente vista pela crítica como um
subgênero. Não demorou para que outros filmes inspirados em seu sucesso
comercial explorassem a mesma fonte, e até mesmo o plagiassem descaradamente,
como os italianos O Anticristo (L’anticristo,
1974) de Alberto De Martino e Espírito
Maligno (Chi Sei?, 1974), de Ovídeo G. Assonitis. O cinema brasileiro
também realizou algumas incursões no rastro de O Exorcista, como Exorcismo
Negro (1974), de José Mojica Marins, e Seduzidas
Pelo Demônio (1978), de Raffaele Rossi. Até mesmo o folclórico cômico
Mazzaropi satirizou a obra de Friedkin em O
Jeca Contra o Capeta (1976).
Com a figura do
Demônio rendendo nas bilheterias, os grandes estúdios continuavam investindo no
tema, possibilitando que em 1976 Richard Donner, amparado no Apocalipse de São
João, concebesse A Profecia (The
Omen), outra obra emblemática para o gênero, que abordava o nascimento do
Anticristo; a materialização do mal na forma de uma criança, que ao crescer
tomaria o poder e iniciaria o declínio da humanidade.
Se nos
primórdios do cinema o Diabo era apenas uma figura caricata, uma metáfora
ingênua e por vezes burlesca do conflito entre o bem e mal, as obras de
Polanski, Friedkin e Donner expandiram a presença das entidades malignas para o
universo físico, onde o campo de batalha deixava de ser metaforicamente a alma
humana, para afligir corporalmente crianças inocentes, ou gerar um ser com intenções
de exterminar com um golpe toda humanidade.
O horror passou
a se originar na perversão da pureza infantil. Assim, as crianças que antes
representavam a esperança, passavam a idealizar um futuro sombrio. O temor
metafísico transforma-se no horror da destruição em massa, refletindo temores
racionais, como a paranóia de uma guerra nuclear que atormentaria o mundo nos
anos 1980. Um demônio possuindo um presidente com o poder de iniciar a terceira
guerra mundial, certamente era mais aterrorizante que um diabo da Idade do
Bronze atormentando freiras num convento isolado do século XVII.
O Anjo expulso
do Paraíso parece ser uma figura de potencial inesgotável para espelhar os
nossos temores, mesmo após figurar em centenas de produções nestes mais de cem
anos de cinema. Apesar de explorado desde o princípio em todos os gêneros,
passando pelas farsas de Méliès, e das comédias como O Pequeno Diabo (Il piccolo diavolo, 1988), de Roberto
Benigni, ao drama existencialista de
obras como Sob o Sol de Satan (Sous
le soleil de Satan, 1987), de Maurice Pialat, a sua natureza grotesca e
complexa o tornou figura indissociável do cinema de horror, além de render
desafios aos atores que o interpretam. Nos anos 1980, Robert De Niro realizou
uma marcante atuação ao compor um refinado Louis Cyphre, em Coração Satânico (Angel Heart, 1987), de
Alan Parker. Em 1997, em O Advogado do
Diabo (The Devil’s Advocate), de Taylor Hackford, o ator Al Pacino imprimiu
em seu maléfico personagem todo o sarcasmo e o cinismo dignos de um embusteiro
infernal. Porém, curiosamente coube a uma mulher, a andrógina atriz italiana
Rosalinda Celentano, a interpretação do Demônio mais enigmático e paradoxal dos
últimos anos, na polêmica produção de Mel Gibson, A Paixão de Cristo (The
Passion of The Christ). Ao ceder o papel
para uma mulher, Gibson nos lembra que o feminino também ostenta sua porção
satânica, herança das lendas de Eva, Lilith, e da força das deusas pagãs.
Em seu livro
“Linguagem e Mito”, Ernst Cassirer afirmou que “cada impressão que o homem
recebe, cada desejo que nele se agita, cada esperança que o atrai e cada perigo
que o ameaça, pode vir a afetá-lo religiosamente”. Ainda vivemos num mundo onde
a sombra dos mitos pode desencadear medos ancestrais, temores irracionais que
tomam formas diversas e podem ser compreendidos em suas manifestações
artísticas. Parafraseando Cassirer (embasado no significado original do termo
grego daemon), se for para encarar esses “demônios momentâneos que vem e vão,
aparecendo e desaparecendo como as próprias emoções subjetivas que os
originam”, que seja através da ficção de uma tela de cinema.
Cristian Verardi
(Crítico de Cinema membro da ACCIRS)
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