Ensaio sobre
a cegueira
Por Arthur Freitas
Ao adaptar um livro para o cinema, o
realizador não jura fidelidade à obra original. Nem deve, uma vez que com um
meio tão diferente, as abordagens, os caminhos e até mesmo o argumento podem
divergir. Afinal, ao escolher adaptar outra obra, o resultado não pode ser uma
película vazia, morta. Deve valer por si mesma, trabalhar de forma
independente.
É preciso deixar isso bem claro. Afinal
de contas, o Ensaio
sobre a cegueira de
Meirelles não é, nem tenta ser, o mesmo de Saramago.
E o Ensaio sobre a cegueira começa na rua, no caos civilizado. É
onde Fernando Meirelles tem pleno domínio de sua estética. Mas é um espanto.
Foram-se os tons quentes de Cidade
de Deus e O Jardineiro Fiel. A frieza, com um grande destaque para
o branco, perdura por todo o filme.
Meirelles é conhecido por seu vigor nas
imagens, mas faz aqui um filme tão clínico quanto naturalista. Mesmo com suas
imagens frias, distância dos elementos em cena, e planos duros, há uma grande
humanidade nas situações, dispensando qualquer risco de cair na teatralidade.
Talvez cause, em seu público, um problema para se interessar pelos personagens,
mas ao final percebesse que a cegueira abordada por Meirelles também se
enquadra para o cinema e seu atual espectador.
Esse elemento do argumento é bem
delineado nas escolhas artísticas do realizador. A “cegueira” da câmera é
angustiante, o desfoque dos planos perturba. Ao nos deixar apenas com o som (e,
em determinados momentos, nem ele), Meirelles aposta na falta da imagem, o
centro de qualquer obra cinematográfica. Ele dá um novo valor à imagem, ele
força o espectador a ver.
E aí está o diferencial de Ensaio sobre a cegueira em sua forma de película. Ele discute
temas próprios com propriedade exemplar, aposta em sua estética tanto quanto em
seu argumento. É cinema, oras. Deixa-se a imaginação de lado — essencial para a
prosa — e dá destaque justamente para a visão, ou a ausência dela, em película.
É um exercício de imagem perigoso, mas Meirelles o carrega bem em momentos
corretos, mostrando uma total apropriação sobre suas escolhas estéticas.
E, para um filme-parábola que aborda o
sentido humano, esse é um pilar importantíssimo. Ao deixar de lado aquela
vivacidade da câmera, que passeia pelas favelas em Cidade de Deus, para enquadramentos duros, Meirelles
entende muito bem que suas imagens serão mais analíticas e menos
participativas; como complemento, porém, há a cegueira branca, para deixar o
espectador a par, próximo e perturbado. Não por igualá-lo ao personagem (o que
o filme não faz), mas por torná-lo, literalmente, impossibilitado de ver.
Ao que resta, então, é uma experiência
sensitiva mais rica, um distanciamento da história quanto personagem e
aproximação quanto argumento. E talvez seja a aposta mais alta do filme, uma
vez que dá uma potência ainda maior para sua história (filmar, por exemplo, as
cenas do campo de isolamento com planos abertos, teatrais, tirariam impacto) e
tapando alguns buracos que podem incomodar. Pode estereotipar alguns personagens,
tornar fatídico demais um ato, ou se estender além da conta no último ato. Mas
não se pode negar, a qualquer momento, que Meirelles não soube lidar com o
material.
De fato, em outras mãos, o filme poderia
ter perdido todo o seu lado incisivo. Poderia ter sido esvaziado em detrimento
a um conto de um relacionamento em um período caótico. Algo que atrairia mais
público, mas daria razão à muitas críticas que o realizador recebeu por ser
pretensioso demais. Mas Meirelles tentou, e a seu modo conseguiu, tornar seu Ensaio sobre a cegueira incisivamente relevante ao cinema como
a obra literária. Caberá ao indivíduo espectador, isolado, decidir se os temas
foram elaborados de forma devida no produto final. E está aí o aspecto-mor do
filme: é necessário vê-lo.
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