sábado, 23 de junho de 2012


Conquista sangrenta – Paul Verhoeven, Rutger Hauer e a Idade Média como o cinema nunca viu

 

Osvaldo Neto[1]

 

O cinema moderno deve muito às grandes parcerias criativas entre atores e diretores.  Basta lembrarmos das contribuições entre Tod Browning e Lon Chaney, que juntos realizaram alguns dos títulos mais impressionantes do período mudo, entre eles The unholy three, The unknown e o hoje perdido London after midnight.  Outras colaborações que geraram obras-primas da sétima arte foram as de John Wayne e John Ford, Toshiro Mifune e Akira Kurosawa, Clint Eastwood e Sergio Leone, Martin Scorsese e Robert De Niro. Até mesmo no campo dos filmes B e de baixíssimo orçamento a história se repete. Impossível pensar no trabalho de Edward D. Wood Jr. sem também pensar em Bela Lugosi emprestando alguma dignidade para os filmes deste infame realizador, por exemplo. Cada uma dessas parcerias costuma resultar em algo mais especial do que o de costume, sem exceção.

Apesar de pouco lembrada como as citadas acima, a parceria entre Paul Verhoeven e Rutger Hauer não fica muito atrás em termos de ousadia e qualidade. Ela teve início quando ambos estavam no início de suas carreiras e Verhoeven dirigiu uma série holandesa de fantasia medieval chamada Floris, protagonizada por ninguém menos que Hauer. Foi com o lançamento de Louca paixão, segundo filme do diretor para os cinemas, e Os amantes de kattie tippel que a dupla ganhou fama internacional. Os dois longas são carregados em erotismo, com o sexo sendo filmado da forma mais naturalista possível, algo que se tornaria uma das marcas registradas de Verhoeven, assim como o uso da violência em suas produções. Quando criticado por isso, ele afirma que o cinema apenas reflete a violência da sociedade. Com a palavra, Paul Verhoeven: "As pessoas gostam de ver violência e coisas horríveis. O ser humano é ruim e ele não suporta mais que cinco minutos de felicidade. Coloque-o numa sala escura e peça para ele assistir duas horas de felicidade e ele sairá da sala ou cairá de sono".



Verhoeven nunca negou que adora chocar o público.  E isso ele faz com sucesso em Conquista sangrenta, sua estréia em Hollywood numa produção da Orion Pictures. Sua visão da Idade Média é possuída por sexo, violência, Peste Negra e ignorância. Ou seja, pela primeira vez, teríamos o registro mais fiel desse período da História Ocidental no cinema. O filme foge por completo do romantismo hollywoodiano que infesta os filmes do gênero. Agnes (Jennifer Jason Leigh) e Steven (Tom Burlison), respectivamente, a mocinha e o mocinho do longa , não se importam com os deformados cadáveres de homens enforcados que estão muito próximos do casal quando eles se beijam pela primeira vez.

Existe também uma severa e explícita crítica às instituições religiosas, na figura do Cardeal interpretado por Ronald Lacey, que é um dos personagens mais perigosos do filme e faz parte do grupo de mercenários liderado por Martin (Rutger Hauer, incrivelmente carismático). Eles idolatram a imagem de um santo que os ‘aponta’ para o caminho que devem seguir. Numa das tomadas mais inspiradas da produção, Martin parece ter uma auréola no topo de sua cabeça.

Conquista sangrenta lida com esses temas sérios, porém jamais deixa de ser um rico filme de aventura, que ganha fôlego quando Martin e seus companheiros sequestram Agnes por engano. A sequência do “estupro” é um dos pontos altos do longa, com o mercenário tirando a virgindade da garota. Aspas foram usadas na palavra porque, de início, o ato foi forçado, mas Agnes termina gostando de fazer sexo com Martin e demonstra isso de tal maneira que os amigos de Martin fazem graça da situação, dizendo que é ele quem está sendo estuprado. Com o passar do tempo, os dois desenvolvem um relacionamento e Agnes fica cada vez menos sem roupa e cada vez mais dividida entre Martin e Steven, que se une ao fiel Hawkwood (o excelente Jack Thompson) e um grupo de soldados para juntar forças e resgatar a sua amada dos algozes.

Além dos atores citados, temos no elenco o espanhol Simón Andreu e os falecidos Susan Tyrrell, Brion James e Bruno Kirby que se destacam dos demais membros do grupo de Martin. A vigorosa trilha de Basil Poledouris (Conan, Amanhecer violento) confere uma grandiosidade épica que é muito bem-vinda, especialmente nas cenas de ação.

O longa é fruto de um tempo em que grandes estúdios independentes como a Orion e a Cannon apostavam nos talentos de realizadores que ofereciam produções que passavam longe do lugar comum, concedendo liberdade criativa para eles fazerem os filmes que bem entendessem.  O sistema de ambas era semelhante. Por exemplo: Enquanto a Cannon lançava Braddock - o super comando de um excelente pau para toda obra do filme de gênero classe B como Joseph Zito, um realizador mais introspectivo e ligado aos espectadores 'cult' do naipe de Andrei Konchalovsky rodava Expresso para o inferno. Muito diferente do que vemos acontecer nos dias de hoje.

Conquista sangrenta marcou a quinta e última parceria de Rutger Hauer com Paul Verhoeven. Hauer já se encontrava bem estabelecido em Hollywood, devido às suas performances de sucesso no cultuado Blade runner e em Falcões da noite, um ótimo policial dirigido por Bruce Malmuth e estrelado por Sylvester Stallone, seu primeiro filme americano. Pouco depois, ele teria um de seus grandes momentos no papel do assustador John Ryder de A morte pede carona. Hauer também se firmaria como astro de ação graças a Exterminador implacável e Fúria cega para acabar dedicando sua carreira para uma série de produções para TV e lançamento direto em vídeo, uma sina que também atingiu outros excelentes atores. Deste período mais “negro”, são poucos os filmes que realmente se destacam e devem ser mais conhecidos, como Um homem sem destino (Mr. Stitch), uma inteligente variação da clássica história de Frankenstein escrita e dirigida por Roger Avary (Pulp fiction, Parceiros do crime) com Hauer como criador e Will Wheaton como a criatura. Recentemente, o astro holandês interpretou Van Helsing para o Drácula de Dario Argento e o pintor Pieter Brugel em O moinho e a cruz de Lech Majewski, dois papéis que deverão recompensar as futuras escolhas do ator.

Logo após Conquista sangrenta e também para a Orion Pictures, Paul Verhoeven comandou aquele que seria o seu maior sucesso comercial: Robocop. Uma obra-prima do cinema de ficção científica, onde Verhoeven também não poupou o espectador de cenas aterradoras e de sua forte visão pessimista do mundo em que vivemos. Outro filmaço viria a seguir, O vingador do futuro, desta vez para a Carolco, que também produziria Instinto selvagem, um filme menor, mas que não deixou de ser um esmagador sucesso de bilheteria. Seus filmes seguintes em Hollywood (Showgirls, Tropas estelares e O homem sem sombra) não atingiram o mesmo brilhantismo das produções anteriores e foi necessário ele voltar à Holanda para realizar A espiã, um dos melhores filmes de sua carreira.

Por conta de atritos entre ator e diretor durante as filmagens de Conquista sangrenta, onde Hauer estava cansado de ser visto como vilão e queria fazer de Martin um tipo mais heróico, não existem previsões para uma futura parceria entre Hauer e Verhoeven. Uma inimizade que certamente acarretou na perda de outros grandes filmes a serem feitos pela dupla.



[1] Crítico de cinema. http://vaeveja.blogspot.com.br/

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