Conquista sangrenta – Paul Verhoeven, Rutger Hauer e a
Idade Média como o cinema nunca viu
Osvaldo Neto[1]
O cinema moderno deve
muito às grandes parcerias criativas entre atores e diretores. Basta lembrarmos das contribuições entre Tod
Browning e Lon Chaney, que juntos realizaram alguns dos títulos mais
impressionantes do período mudo, entre eles The
unholy three, The unknown e o hoje perdido London after midnight. Outras colaborações que geraram obras-primas
da sétima arte foram as de John Wayne e John Ford, Toshiro Mifune e Akira
Kurosawa, Clint Eastwood e Sergio Leone, Martin Scorsese e Robert De Niro. Até
mesmo no campo dos filmes B e de baixíssimo orçamento a história se repete. Impossível
pensar no trabalho de Edward D. Wood Jr. sem também pensar em Bela Lugosi
emprestando alguma dignidade para os filmes deste infame realizador, por
exemplo. Cada uma dessas parcerias costuma resultar em algo mais especial do
que o de costume, sem exceção.
Apesar de pouco
lembrada como as citadas acima, a parceria entre Paul Verhoeven e Rutger Hauer
não fica muito atrás em termos de ousadia e qualidade. Ela teve início quando
ambos estavam no início de suas carreiras e Verhoeven dirigiu uma série
holandesa de fantasia medieval chamada Floris,
protagonizada por ninguém menos que Hauer. Foi com o lançamento de Louca paixão, segundo filme do diretor
para os cinemas, e Os amantes de kattie
tippel que a dupla ganhou fama internacional. Os dois longas são carregados
em erotismo, com o sexo sendo filmado da forma mais naturalista possível, algo
que se tornaria uma das marcas registradas de Verhoeven, assim como o uso da
violência em suas produções. Quando criticado por isso, ele afirma que o cinema
apenas reflete a violência da sociedade. Com a palavra, Paul Verhoeven: "As
pessoas gostam de ver violência e coisas horríveis. O ser humano é ruim e ele
não suporta mais que cinco minutos de felicidade. Coloque-o numa sala escura e
peça para ele assistir duas horas de felicidade e ele sairá da sala ou cairá de
sono".
Verhoeven nunca negou
que adora chocar o público. E isso ele
faz com sucesso em Conquista sangrenta,
sua estréia em Hollywood numa produção da Orion Pictures. Sua visão da Idade
Média é possuída por sexo, violência, Peste Negra e ignorância. Ou seja, pela
primeira vez, teríamos o registro mais fiel desse período da História Ocidental
no cinema. O filme foge por completo do romantismo hollywoodiano que infesta os
filmes do gênero. Agnes (Jennifer Jason Leigh) e Steven (Tom Burlison),
respectivamente, a mocinha e o mocinho do longa , não se importam com os deformados
cadáveres de homens enforcados que estão muito próximos do casal quando eles se
beijam pela primeira vez.
Existe também uma
severa e explícita crítica às instituições religiosas, na figura do Cardeal
interpretado por Ronald Lacey, que é um dos personagens mais perigosos do filme
e faz parte do grupo de mercenários liderado por Martin (Rutger Hauer,
incrivelmente carismático). Eles idolatram a imagem de um santo que os ‘aponta’
para o caminho que devem seguir. Numa das tomadas mais inspiradas da produção,
Martin parece ter uma auréola no topo de sua cabeça.
Conquista
sangrenta lida com esses temas sérios, porém jamais deixa de
ser um rico filme de aventura, que ganha fôlego quando Martin e seus
companheiros sequestram Agnes por engano. A sequência do “estupro” é um dos
pontos altos do longa, com o mercenário tirando a virgindade da garota. Aspas
foram usadas na palavra porque, de início, o ato foi forçado, mas Agnes termina
gostando de fazer sexo com Martin e demonstra isso de tal maneira que os amigos
de Martin fazem graça da situação, dizendo que é ele quem está sendo estuprado.
Com o passar do tempo, os dois desenvolvem um relacionamento e Agnes fica cada vez
menos sem roupa e cada vez mais dividida entre Martin e Steven, que se une ao
fiel Hawkwood (o excelente Jack Thompson) e um grupo de soldados para juntar
forças e resgatar a sua amada dos algozes.
Além dos atores citados,
temos no elenco o espanhol Simón Andreu e os falecidos Susan Tyrrell, Brion
James e Bruno Kirby que se destacam dos demais membros do grupo de Martin. A
vigorosa trilha de Basil Poledouris (Conan,
Amanhecer violento) confere uma grandiosidade épica que é muito bem-vinda,
especialmente nas cenas de ação.
O longa é fruto de um
tempo em que grandes estúdios independentes como a Orion e a Cannon apostavam
nos talentos de realizadores que ofereciam produções que passavam longe do
lugar comum, concedendo liberdade criativa para eles fazerem os filmes que bem
entendessem. O sistema de ambas era semelhante.
Por exemplo: Enquanto a Cannon lançava Braddock
- o super comando de um excelente pau para toda obra do filme de gênero
classe B como Joseph Zito, um realizador mais introspectivo e ligado aos
espectadores 'cult' do naipe de Andrei Konchalovsky rodava Expresso para o inferno. Muito diferente do que vemos acontecer nos
dias de hoje.
Conquista
sangrenta marcou a quinta e última parceria de Rutger Hauer
com Paul Verhoeven. Hauer já se encontrava bem estabelecido em Hollywood,
devido às suas performances de sucesso no cultuado Blade runner e em Falcões da
noite, um ótimo policial dirigido por Bruce Malmuth e estrelado por
Sylvester Stallone, seu primeiro filme americano. Pouco depois, ele teria um de
seus grandes momentos no papel do assustador John Ryder de A morte pede carona. Hauer também se firmaria como astro de ação
graças a Exterminador implacável e Fúria cega para acabar dedicando sua
carreira para uma série de produções para TV e lançamento direto em vídeo, uma
sina que também atingiu outros excelentes atores. Deste período mais “negro”,
são poucos os filmes que realmente se destacam e devem ser mais conhecidos,
como Um homem sem destino (Mr. Stitch), uma inteligente variação da
clássica história de Frankenstein escrita e dirigida por Roger Avary (Pulp fiction, Parceiros do crime) com Hauer como criador e Will Wheaton como a
criatura. Recentemente, o astro holandês interpretou Van Helsing para o Drácula de Dario Argento e o pintor
Pieter Brugel em O moinho e a cruz de
Lech Majewski, dois papéis que deverão recompensar as futuras escolhas do ator.
Logo após Conquista sangrenta e também para a
Orion Pictures, Paul Verhoeven comandou aquele que seria o seu maior sucesso
comercial: Robocop. Uma obra-prima do
cinema de ficção científica, onde Verhoeven também não poupou o espectador de
cenas aterradoras e de sua forte visão pessimista do mundo em que vivemos.
Outro filmaço viria a seguir, O vingador
do futuro, desta vez para a Carolco, que também produziria Instinto selvagem, um filme menor, mas que não deixou de ser um esmagador
sucesso de bilheteria. Seus filmes seguintes em Hollywood (Showgirls, Tropas estelares
e O homem sem sombra) não atingiram o mesmo brilhantismo das produções
anteriores e foi necessário ele voltar à Holanda para realizar A espiã, um dos melhores filmes de sua
carreira.
Por conta de atritos
entre ator e diretor durante as filmagens de Conquista sangrenta, onde Hauer estava cansado de ser visto como
vilão e queria fazer de Martin um tipo mais heróico, não existem previsões para
uma futura parceria entre Hauer e Verhoeven. Uma inimizade que certamente
acarretou na perda de outros grandes filmes a serem feitos pela dupla.
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