A Guerra dos Mundos. De H. G. Wells a Steven Spielberg
Por Rafael Belló Klein
É
possível que nem todos, especialmente os mais jovens apreciadores do cinema
hollywoodiano moderno, repleto de efeitos especiais, saibam que o filme Guerra
dos Mundos, grande sucesso de bilheteria de Steven Spielberg, foi baseado
em uma obra literária do século XIX. De fato, a inspiração para a superprodução
de Spielberg, de 2005, foi o livro The War of the Words do escritor
britânico Herbert George (H. G.) Wells, publicado pela primeira vez em 1898.
H. G. Wells é hoje considerado um
dos grandes fundadores da ficção científica como gênero literário. Entre suas
obras encontram-se grandes clássicos como A Máquina do Tempo (1895), A
Ilha do Dr. Moreau (1896), O Homem Invisível (1897) e, é claro, A
Guerra dos Mundos (1898); todos com diversas adaptações de sucesso para o
cinema.
O livro A Guerra dos Mundos de Wells, dividido em duas partes,
narra a história da chegada e da conquista da Terra por marcianos, uma raça de
seres tecnologicamente mais avançada que a nossa, que por muito tempo observou,
invejou e desejou para si nosso fértil e habitável planeta, tendo em vista o
esgotamento e degradação do seu próprio planeta de origem. Os marcianos chegam
a Terra por meio de cápsulas artificiais, à primeira vista confundidas com
meteoros, uma das quais cai nos arredores de Londres, próximo à casa do
narrador da história, cuja identidade não é apresentada.
Os invasores, após algum tempo, saem de suas cápsulas, sendo feita na
seqüência, uma primeira tentativa pacífica de comunicação, porém o grupo que se
aproxima dos marcianos é desintegrado pela ação de um “raio de calor” (heat-ray,
no original). Esta, juntamente com os tripods, grandes estruturas
metálicas com três pernas e a black smoke, fumaça negra tóxica, são as
principais armas dos marcianos, cuja avançada tecnologia em breve domina toda a
região.
A descrição dos marcianos, semelhantes a polvos gigantes, é impactante:
“Uma grande massa cinzenta e arredondada, talvez do tamanho de um urso,
emergia lenta e penosamente do cilindro. (...) brilhava como couro molhado.
Dois grandes olhos escuros fitavam-me impassivelmente. A massa que os rodeava,
a cabeça da coisa, era redonda e tinha, digamos, um rosto. Havia uma boca sob
os olhos, uma fenda sem lábios que fremia e arquejava, pingando saliva. (...).
Quem nunca viu um marciano vivo não pode imaginar a
estranheza e o horror de sua aparência. (...) o incessante frêmito da boca, o
monstruoso grupo de tentáculos, como os de uma Górgone, o tumultuoso respirar
dos pulmões (...). Havia algo de fungóide na oleosa pele marrom, algo de uma
sordidez indizível na deliberação desajeitada dos movimentos tediosos. Mesmo
nesse primeiro encontro, (...) o nojo e o pavor me dominaram”.
Sem querer examinar à exaustão a cativante narrativa de Wells, é
interessante citar também a famosa passagem em que o protagonista-narrador fica
preso com um padre em uma casa em ruínas, com os invasores nas proximidades.
Isso porque, em primeiro lugar, esta será uma cena adaptada nas versões
cinematográficas do livro, mas principalmente pela sua significação maior. O
religioso está convencido de que a chegada dos alienígenas é o advento do
Apocalipse bíblico, e passa a ter ruidosos rompantes de fé, que acabam por
atrair os marcianos. Por suas ações, temos a impressão de que o padre
enlouqueceu perante a situação.
De fato, temos a partir daí uma possível interpretação da obra de Wells.
A humanidade salva-se da invasão marciana não por uma intervenção direta por
parte de Deus ou de sua Igreja; ao contrário, Wells aparenta ser bastante
pessimista quanto às instituições religiosas, como fica claro na passagem
acima. A salvação da humanidade se dá pela ação de bactérias presentes em nossa
atmosfera, para as quais os marcianos não possuem nenhum tipo de defesa imunológica.
No entanto, apesar do materialismo da solução da crise, não se pode dar à
história um caráter de ateísmo, visto que as bactérias para Wells os marcianos
foram derrotados “depois do fracasso de todos os recursos humanos, pelos mais
humildes seres que Deus, em sua sabedoria, havia posto sobre a Terra”.
Outras interpretações da Guerra dos Mundos ressaltam sua ênfase no
cientificismo do século XIX, incorporando os conceitos de seleção natural e de
darwinismo social; ou seu caráter visionário ao “prever” tecnologias que seriam
desenvolvidas ao longo do século XX (guerra química, uso de gases, raio laser);
ou ainda uma crítica implícita ao imperialismo britânico que chega como um
invasor, devasta outros povos, suga seus recursos (a imagem dos alienígenas que
se alimentam de sangue de outras criaturas, inclusive do homem, é bastante
significativa) e traz consigo inclusive um impacto ambiental (no livro, a red
weed, ou hera vermelha, trazida pelos marcianos, rapidamente se alastra
pela vegetação terrestre).
Ainda mais desconhecido que a origem literária do filme, talvez, seja o
fato de Spielberg não ter sido o único a trazer a obra de Wells para as telas
do cinema. Além das produções independentes mais recentes (e menos divulgadas),
a Guerra dos Mundos ganhou sua primeira versão cinematográfica através
das lentes do diretor Byron Haskin e do produtor George Pal, em 1953; tendo
recebido o Oscar de efeitos especiais daquele ano, e sendo hoje considerado um
clássico da ficção científica dos anos 50.
O enredo central da história é bastante semelhante ao do livro,
brevemente exposto acima, porém com algumas diferenças. Os marcianos chegam
também em cápsulas confundidas por meteoros; porém a trama se desenrola na
Califórnia (como bem soe ao cinema norte-americano) e ao invés de um narrador
impessoal, ela se centrará na figura do Dr. Clayton Forrester (Gene Barry),
cientista anteriormente engajado no Projeto Manhattan, que formará par
romântico com Sylvia Van Buren (Ann Robinson), a quem encontra no local de
queda do “meteoro”. Ambos irão protagonizar e celebrizar a cena do refúgio na
casa em ruínas, cercada por alienígenas que os procuram, primeiro com uma
câmera e depois pessoalmente. O papel do religioso, por sua vez, é aqui
representado pelo tio de Sylvia, o pastor Matthew Collins (Lewis Martin) que
tenta um contato pacífico antes do belicoso, ostentando uma Bíblia, na crença
de não ser atacado. Ele, no entanto, é desintegrado pelo raio de calor dos
marcianos, a exemplo de todos que antes tentaram uma aproximação.
Há entanto, no filme, uma espécie de “redenção” da religiosidade, visto
que Sylvia e Forrester, juntamente com todos aqueles que não conseguiram
escapar da cidade grande refugiam-se em uma igreja à espera de um milagre, que
vem sob a forma de uma ação natural das bactérias sobre os organismos indefesos
dos marcianos.
Existem ainda detalhes estéticos e do desenrolar da história, que diferem
do original do livro, e que são interessantes de se pontuar, pois tem
influências no trabalho de Spielberg. Em primeiro lugar, a utilidade dos
humanos para os invasores que no livro é a de servir como alimento, no filme de
Haskin ela inexiste – os terráqueos são apenas um empecilho a colonização
marciana do planeta e devem ser exterminados. Em segundo lugar, se no livro a
tecnologia bélica do século XIX, ainda que pouco eficaz, é capaz de
proporcionar um conflito, uma resistência, no filme as armas utilizadas pelo
ser humano contra os invasores são totalmente inúteis (inclusive a bomba
atômica!), esbarrando em um campo de força ao redor das naves marcianas. Por
fim, a aparência dos extraterrestres e de suas máquinas diferem das descrições
de Wells. Os tripods não aparecem no filme de Haskin, sendo substituídos
por naves flutuantes de formato triangular, com uma “cabeça” emissora dos raios
de calor. Os marcianos (ou o marciano, pois apenas uma vez ele aparece
nitidamente – na cena da casa abandonada) aparecem com uma estrutura bípede
ereta, quase humanóide, são mais baixos que um homem adulto, e apresentam uma
particular (e desconcertante) recorrência do número três: três dedos, três
olhos, e chegam em grupos de três naves.
A versão de Spielberg, como vemos, tem suas influências e precursores.
Mantendo a seqüência original de chegada – conquista da Terra – queda devido à
ação de microorganismos, Spielberg insere na trama, além dos efeitos especiais
que tornam o filme mais realista e por isso mais assustador, o drama familiar
de Ray Ferrier (Tom Cruise), que tem uma relação distante com seus filhos
Rachel (Dakota Fanning) e, principalmente, Robbie (Justin Chatwin).
A chegada dos invasores – que dessa vez não são originários de Marte, mas
de outro planeta desconhecido – se dá de forma diferente das versões
anteriores: agora eles criam uma tempestade eletromagnética, que desativa todos
os serviços eletrônicos (também anulados nas áreas em que caem os meteoros na
versão de 1953), e utilizam a partir dela uma espécie de “raio-transportador”,
que os leva aos tripods enterrados nas profundezas da terra há milhares
de anos, revelando uma premeditação atemorizante. É notório que a violência dos
invasores se manifeste com uma rapidez quase imediata, bem mais rápida que nas
versões anteriores, e até destoante da filmografia anterior de Spielberg – onde
sempre houve uma propensão ao contato interplanetário pacífico, como em Contatos
Imediatos de Terceiro Grau (1977) e E.T. (1982).
Sem entrar em muitos detalhes acerca do enredo da história, podemos
destacar algumas das retomadas de Spielberg: os humanos voltam a ter uma
utilidade para os invasores (fertilizar a red weed); o padrão trinomial
dos extraterrestres, introduzido pela versão de Haskin e Pal, é expandido (os
alienígenas possuem além dos três dedos, três pernas e uma cabeça em formato
quase triangular – fazendo com que os tripods pareçam uma versão
metálica gigante dos próprios invasores); as armas humanas seguem sem fazer
efeito contra a tecnologia extraterrestre; e, por fim, a utilização por
Spielberg de cenas clássicas do filme anterior – por exemplo, a cena final do
alienígena agonizante que estende a mão para fora do tripod e a cena do
abrigo na casa em ruínas, que parece uma junção de influências do livro (a
condensação de personagens do livro na figura de Harlan Ogilvy, representado
por Tim Robbins) e do filme anterior (proteção de uma “indefesa”, antes o par
romântico, agora a filha).
O filme de 2005, assim, deixa claro que não é uma mera refilmagem, uma
simples atualização da obra anterior. Spielberg faz questão de imprimir sua
marca ao filme, sem, no entanto, desfigurá-lo ou renegar a influência da
produção anterior, selando o reconhecimento dessa dívida ao escalar, para os
papéis dos ex-sogros de Ferrier, Gene Barry e Ann Robinson, estrelas do Guerra
dos Mundos de 1953.
Rafael Belló Klein é graduado em História na UFRGS.
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